segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Histórias do Norte - Parte 5

    Ainda não nevava, mas o frio sempre aumentava no outono, pequenas gotas de chuva começaram a cair, quase tão frias quanto neve, olhei para fora, pela janela e percebi que todas as crianças entraram em seus lares pouco depois de mim, algumas das melhores casas tinham fumaça saindo das lareiras que as aqueciam ao cair da noite, o cheiro de comida fazia o meu estômago se agitar, olhei para trás e na mesa só havia pão, hidromel e armas.
    Senti saudades de casa, dos cordeiros quase tão gordos quanto as crianças que viviam na minha aldeia, será que algum dia seríamos assim de novo? Será que de além mar alguém se lembrava de mim? Eu era uma espécie de acordo de paz, algo que evitou muito mais sangue, eu sabia da importância disso, mas nada diminuía essa saudade.
    -Trouxe comida. - Ele entrou vestido em suas roupas pesadas de pele com pequenos potes cobertos com placas de madeira, botou-os na mesa, retirou as armas e sentou-se cortando o pão e servindo hidromel.
    Sentei de cabeça baixa e em silêncio, retirei a tampa dos potes e me deparei com uma cheirosa sopa de tubérculos.
    -...Minha irmã mandou eu trazer pra você... - ele disse e logo começamos a comer, junto ao meu silêncio como resposta.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Histórias do Norte - Parte 4

-E se, por um acaso, você me perdoasse um dia? - ele perguntou, se sentando na grama e me olhando bem fundo nos olhos.
-Eu sinto falta de casa. - respondi, encarando-o quase tão profundamente que poderia ver sua alma.
-Essa é a sua casa agora. E algum dia você verá isso.
-Eu não posso sentir isso, aqui é frio, o cheiro é de morte, poucas coisas florescem e crescem firmes nesse chão, como veria esse lugar como meu lar?
-No interior da montanha há chama e calor, como o que existe aqui... - ele bateu firme em seu peito -...e ele sempre aumenta quando se encontra com os olhos da bruxa no abismo...
-Ela é só um espólio de guerra. - Interrompi sua fala de maneira firme, me levantando e correndo de volta para o aglomerado de casebres de madeira.

domingo, 8 de outubro de 2017

Histórias do Norte - Parte 3

  Após alguns minutos seus dedos tocaram os meus, recuei e sorri sentando na terra e dando pequenas batidas nos meus cabelos negros e selvagens.
- O que traz o senhor até aqui? - perguntei enrolando alguns matos nos dedos.
- Um sonho. - Ele se ajeitou deitando de barriga para cima com um dos braços embaixo da cabeça e o outro apoiado na barriga.
- Continua...
- Eu estava em um dos nossos navios, o mar estava sereno e nós sentíamos que iríamos longe, então em um certo ponto havia um abismo, tentávamos fazer a volta e não adiantava, era como se ele nos puxasse com a força de mil gigantes e então lá no abismo eu via um par de olhos, olhos amendoados e misteriosos e então eu acordei. - ele olhou fixamente esperando uma resposta e eu respirei fundo ficando alguns segundos em silêncio.
- Você também consegue "ouvir" o inverno chegando? - perguntei por fim.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Histórias do Norte - Parte 2

  Ainda levemente sonolenta e deitada na relva pude ouvir seus passos lentos e firmes, passos quase tão decididos quanto extremamente cuidadosos, abri os olhos, mas não ergui a cabeça, sabia qual era o seu próximo passo e ele deitou ali ao meu lado, também de bruços e com o ouvido na terra.
  Não dissemos uma só palavra enquanto nos olhávamos bem nos olhos, mas nossas respirações, "ah", as nossas respirações conversavam entre si, e elas diziam claramente: "por favor, fique um pouco mais".

domingo, 1 de outubro de 2017

Histórias do Norte - Parte 1

  Existe um abismo, um abismo no meio do deserto, um abismo onde nada cresce e nós vivemos lá, nas montanhas congeladas, perto desse abismo, e a fome, ela é nossa única certeza... Me chamo Marion, ou me chamava ou me chamarei, esse foi o nome que recebi dos ventos gélidos do norte.
  Agora é outono, e eu já consigo enxergar as folhas secando uma a uma, eu consigo ouvir os últimos respiros da terra, deitada aqui no chão de uma relva quase seca e fria, o meu coração parece se apertar e diminuir a cada dia que chega, fecho meus olhos e adormeço por milésimos de segundos ou milhões de anos, adormeço junto da terra.